sábado, 13 de junho de 2009

Sentido, vivido e protagonizado

C.Flores

Este texto pretende estabelecer um breve apontamento sobre alguns conceitos encontrados nas obras de dois autores:Georges Gusdorf e Octavio Paz,para que possam servir como aporte para discussões acerca do mito.
Sem a intenção de ser um texto fechado, será a partir das leituras e discussões nas aulas de Literatura e Mito-em que pessoas ligadas à história da humanidade, em seu aspecto cultural, pessoas ligadas à antropologia cultural e à literatura-, poderão trazer novas contribuições,contraditanto idéias e apresentando elementos que possam fortalecê-las e aclará-las.
Dessa forma se pretende trazer à tona um movimento, um tema que vem se firmando no meio acadêmico, após a derrocada das certezas científicas e vem dando lugar ao universo das probabilidades e das incertezas. Sem dúvida, é um trabalho instigante e exige muita leitura, comprometimento e consciência crítica.



Poesia e mitologia

Mais do que uma exposição histórica e sistemática das diferentes formas de conceber a articulação entre imaginário e mitologia, é refletir sobre a natureza e o sentido do imaginário mítico, entendido como impulso para a criação ou expressão de imagens míticas.
A originária plasmação da experiência humana em imagens vividas, onde se indissociam o pensamento e a ação, e que assumem assim a função de arquétipo ( tema que a posteriori, poderá ou não ser abordado), e que parecem estruturar todo o domínio da forma e da manifestação, ou seja, todo o pensar, dizer, fazer, precedendo, possibilitando e condicionando as suas várias interpretações e sobrevivendo a todas as tentativas de redução a outros princípios explicativos.
O que acontece, porém, é que o mito, como narrativa imagética e dramática, instauradora de sentido, sempre que não abstraído da concretude da sua emergência experimental, cultural e humana-freqüentemente de natureza religiosa, cultural e ritual- remete para uma vivência anterior à sua objetivação como um mito, com as características formais apontadas. É que seu próprio enunciado como tal significa que já emergiu da originária experiência mítica a consciência conceitual. A cisão entre mythos e logus, pela qual se passa da vivência mítica para a mitologia, nascida com a sua implícita teorização racional, a filosofia, nos confronta com a dificuldade fundamental de reconhecer que, para o pleno cumprimento do sentido da própria razão ( que busca compreender o mais objetivamente possível o mundo da experiência mítica), teríamos que regressar a uma instância anterior a constituição dessa razão que nos permite conceber falar de um mundo da experiência mítica.
É uma paradoxal situação. O logos, tendo emergido de uma experiência anterior e originária, por aspirar a conhecê-la, objetiva e conceitualmente, a sedimenta com mythos- uma palavra ou narrativa que, sendo a fonte de todo o discurso, e permitindo acercar-se de si infinitos discursos possíveis-, na verdade como que persistisse irredutível acerca de si mesmo e da sua origem, encerrando-se perante a inquirição e discursividade racionais, num silêncio inviolável.
Fernando Pessoa, porventura mais próximo dessa originária experiência-limite entre o silêncio e a palavra ou palavra do silêncio- escreveu que “ o mito é o nada que é tudo.” A questão é que, desde suas origens, fundamentalmente na sua matriz helênica, quer enquanto fixação textual das narrativas orais tradicionais, quer enquanto sua interpretação filosófica, ambas subordinadas ao advento da escrita, deixou na penumbra da alteridade não apenas o mito, que na verdade ajudou a elaborar, mas a vivência ou experiência mítica, e nela a particular forma de viver dramaticamente tais imagens que parecem confluir o inteligível e o sensível, o humano, o cósmico e o divino.
A implícita racionalidade que lógica ou pré-lógica, se reconhece na própria forma mítica de pensar, bem como a tese que vê no advento helênico da filosofia ocidental a metamorfose conceitual de prévias concepções expressas em imagens e símbolos mitopoéticos e religiosos. A verdade do mito não pode ser provada cientificamente; a vivência mítica circula no ciclo alegórico.Procurar explicações e significações para o mito, exteriores à plenitude da sua vivência, de seus limites, é sempre limiar aos limites desta mesma racionalização.
Mais do que mera palavra, o mito remete a uma experiência de integração no mundo que convoca e compromete todas as potências do homem: “ o mito é sentido e vivido antes de ser inteligido e formulado. Ele é a palavra, a figura, o gesto que circunscreve o acontecimento no coração do homem, emotivo como uma criança, antes de ser uma narração fixada.” É possível concordar ainda com o autor da citação acima, Roland Barthes, quando este afirma que o mito não pode ser um objeto ou um conceito. Ele é o modo de significação e não há como definir o mito pelo objeto da sua mensagem, mas pelo modo como a profere.
Como exemplo, é possível citar o mito de Pandora, que enviada aos homens, abre por curiosidade a caixa da qual saem todos os males. Pandora consegue fechá-la a tempo de reter a esperança, única forma do homem não sucumbir às dores e aos sofrimentos da vida. Essa narrativa mítica explica a origem dos males, sendo esta a única maneira de compreender tal realidade.
Para Gusdorf é um equívoco pensar que o mito seja lenda. Ele diz que é um erro da interpretação tradicional pensar o mito como uma espécie de lenda, de narração de acontecimentos fabulosos, que esconde em si uma doutrina mais ou menos rudimentar; não existe um compromisso, neste caso, com a realidade- são meras histórias sobrenaturais. O mito não é exclusividade de povos primitivos, nem civilizações nascentes, mas existe em todos os tempos e culturas como componente indissociável da maneira humana de compreender a realidade.
Sentido, vivido e protagonizado antes mesmo de ser dito e compreendido, o mito remete para a experiência primeira que parece estar desde a origem da civilização humana: o sentimento da sua presença, proximidade do divino que faz do homem a forma e a linguagem da sua expressão , sem qualquer distinção e oposição entre corpo e espírito, sensível e inteligível, movido ou não por qualquer interesse ou utilidade.O mito não se submete `a razão das disciplinas científicas. É a celebração festiva e criativa do encontro esssencial em que o homem, na sua forma-um monumento uno-se perde e se transfere, se incarna nas suas danças, nos seus ritos, procissões, e, à medida que tal imanência acontece, ele cria outras formas de representações na pedra, na cor, no silêncio ou no som das palavras.
Finalmente, tal alogicidade que está relacionada a um contexto existencial e que nele se apóia de forma integrada, à experiência mítica, tal como a música, a poesia e a dança, ilumina e torna mais transparente um aspecto que não pode ser sentido na objetividade do científico; a mitologia é um meio mágico dissolvido em formas de expressão para realizar o desejo do que não existe, mas como representação da intensidade do que se apresenta, do que já é presente: essa constante renovação de todas as coisas-homem e mundo- numa celebração intemporal, onde se unem intensidade vital e poética, como um significante propiciador de toda uma ação que realiza uma transcendência; para Gusdorf, a conduta do primitivo, submetida inteiramente ao controle do mito, aqui “costurado” ao pensamento de Otávio Paz que escreve que a pedra da estátua, o vermelho do quadro não são pura e simplesmente quadro, pedra e cor; encarnam algo que os transcende e ultrapassa e nem por isso perdem seus valores primários, ou seja, originariamente aquilo que são.



Referências Bibliográficas:



GUSDORF, Georges. Mito e Metafísica. São Paulo : Convívio, 1980.
PAZ, Octávio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1982.
SHCHWAB, Gustav. As mais belas histórias da antigüidade clássica.São Paulo: Paz e Terra,1996.



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